Em decisão, inédita, publicada em 16 de outubro de 2018, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça mitigou a regra geral da impenhorabilidade de salários e vencimentos prevista no art. 649, inciso IV, do CPC/73 e reproduzida pelo art. 833, IV, do CPC/15, para autorizar a penhora sobre o salário de um servidor público, desde que preservado percentual capaz de manter a dignidade do devedor e de sua família
O julgamento dos Embargos de Divergência de n. 1.582.475 teve início no dia 19 de setembro de 2018 e, após sustentação oral do Dr. Guilherme Rodriguez de Macedo, advogado do escritório mineiro Machado Mendes Sociedade de Advogados, foi solicitada vista regimental pelo Ministro Relator Benedito Gonçalves.
Retomado o julgamento, no dia 03 de outubro de 2018, a Corte Especial negou provimento aos Embargos de Divergência, por maioria de votos, restando vencido apenas o Ministro Herman Benjamin, mantendo a penhora de 30% sobre a remuneração líquida do devedor.
O objeto da demanda, levada à apreciação da Corte Especial versa sobre a execução de notas promissórias ajuizada em desfavor de um servidor público com remuneração superior a 30 (trinta) salários mínimos mensais.
O Código de Processo Civil, em seu art. 805[1], incrementa verdadeira proteção ao devedor, quando estabelece que os processos de execução devem sempre se pautar pelo princípio da menor onerosidade ao seu patrimônio, garantindo, precipuamente, a sua subsistência.
Contudo, promovendo um equilíbrio entre as partes, e garantindo, ainda, a efetividade do processo executório, o art. 789[2]normatiza o princípio da responsabilidade patrimonial, consagrando o brocado segundo o qual “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
Tais restrições constituem as chamadas “regras de impenhorabilidade” que, inseridas em um conjunto de medidas previstas pelo legislador para preservar o patrimônio do devedor, representam limitações à satisfação do credor com o objetivo de garantir o mínimo necessário para a manutenção da dignidade do devedor.
Em um primeiro momento, o artigo 649[3]do Código de Processo Civil de 1973, previa que a regra de impenhorabilidade das verbas salariais, comportava exceção apenas em caso de penhora para pagamento da prestação alimentícia propriamente dita.
Entretanto, a referida norma foi ampliada, a partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015[4], trazendo a possibilidade de penhora sobre os salários para satisfazer pretensões relativas ao pagamento de verbas com natureza alimentícia, independente de sua origem, mas, também para abranger importâncias, de outras naturezas, desde que excedentes ao valor correspondente a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais.
Nota-se claramente um avanço na legislação, na medida em que, repita-se, dando efetividade ao processo executório, afasta a regra de impenhorabilidade salarial para a quitação de dívidas excedentes a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais, e para pagamento de verbas com natureza alimentícia, independente de sua origem.
A essência da aludida norma está na preocupação do legislador em compatibilizar a busca da satisfação do débito com a mínima dignidade humana do executado.
Sob essa ótica, a aplicação do art. 833, inciso IV, exige um juízo de ponderação do Magistrado, à luz das circunstâncias que se apresentam caso a caso, sendo admissível que, em situações excepcionais, se afaste a impenhorabilidade de parte da remuneração do devedor para que se confira efetividade à tutela jurisdicional favorável ao credor.
São vários os julgados que confirmam que as decisões devem ser proferidas considerando-se situações peculiares, tendo-se em conta, por exemplo, a origem da dívida, o valor da remuneração, soldo ou salário do executado, o quantum penhorado, entre outros requisitos, mas sempre em estrita consonância com os princípios da razoabilidade e efetividade.
Neste sentido, o acórdão do RESP nº. 1473848/MS, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, atestou ainda que “a regra geral da impenhorabilidade inscrita no art. 649, inciso IV, do CPC pode ser mitigada, em nome dos princípios da efetividade e da razoabilidade, nos casos em que ficar demonstrado que a penhora não afeta a dignidade do devedor”.
Em seu voto, o Ministro João Otávio de Noronha afirmou, ainda, que a mitigação da regra da impenhorabilidade salarial “mostra-se em sintonia com a jurisprudência do STJ de que não viola a garantia assegurada ao titular de verba de natureza alimentar a afetação de parcela menor de montante maior, desde que o percentual afetado se mostre insuscetível de comprometer o sustento do favorecido e de sua família e que a afetação vise à satisfação de legítimo crédito de terceiro, representado por título executivo.”.
E, observe-se que, a bem da verdade, se o disposto no art. 833, inciso IV, do CPC/2015 for aplicado de forma isolada dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico pátrio, em especial, o da razoabilidade, ensejar-se-á situações de desmesurada proteção ao devedor, em franco detrimento da entrega da prestação jurisdicional no processo de execução, mediante a satisfação do débito.
Se a regra da impenhorabilidade salarial for aplicada de forma absoluta, o devedor certamente se beneficiará e continuará prejudicando os credores, os quais não terão o crédito adimplido, pelo simples fato da impenhorabilidade salarial representar verdadeira blindagem de acesso ao seu patrimônio.
Tem-se, assim, que a regra da impenhorabilidade deve ser relativizada, quando diante do caso concreto, seja possível a interpretação extensiva da norma, a fim de autorizar o bloqueio de parte da verba remuneratória, desde que, por óbvio, repita-se, seja preservado o mínimo existencial ao devedor e sua família.
Nas palavras da Eminente Ministra NANCY ANDRIGHI[5],deve-se buscar “harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana – de um lado, o direito ao mínimo existencial; de outro, o direito à satisfação executiva”.
Assim, bem andou o Ministro Benedito Gonçalves ao negar provimento aos Embargos de Divergência de n. 1.582.475, expressando, em seu voto, com perfeição, a importância em promover o equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do crédito e o direito de devedor a responder pelo débito com a preservação de sua dignidade:
- “Para além do dever de portar-se processualmente de acordo com os preceitos da boa-fé, as partes têm direito ao tratamento processual isonômico, o que se revela na execução civil como o direito a receber tratamento jurisdicional que saiba equilibrar, de um lado, o direito do credor à satisfação do crédito executado e, de outro, o direito do devedor a responder pelo débito com a preservação de sua dignidade.
- Isto considerado, é de se notar que estão em questão, potencialmente contrapostos, direitos fundamentais das partes. De um lado, o credor tem direito ao Estado de Direito, ao acesso à ordem jurídica justa, ao devido processo legal processual e material. De outro, também o devedor tem direito ao devido processo legal, que preserve o mínimo existencial e sua dignidade.
- Sob essa ótica da preservação de direitos fundamentais, o direito do credor a ver satisfeito seu crédito não pode encontrar restrição injustificada, desproporcional, desnecessária. No que diz respeito, portanto, aos casos de impenhorabilidade (e sua extensão), só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.”
Em suma, a decisão proferida pela mais alta Corte do Superior Tribunal de Justiça, nada mais fez, com a maestria que representa os embates travados no órgão, senão promover o equilíbrio entre direito do credor à satisfação do crédito executado e o direito do devedor a responder pelo débito com a preservação de sua dignidade e da de seus dependentes, sempre atentos as peculiaridades do caso concreto.